domingo, 12 de fevereiro de 2017

Humanos (sub.) não humanos (adj.)

Numa frase de Bertolt Brecht, “que tempos são estes, em que é necessário defender o óbvio?”, me perco na capacidade humana de se superar negativamente em meio ao caos que estamos vivendo. O nosso egoísmo e visão de mundo limitada nos trouxeram até aqui. Não temos educação política o suficiente para separar marketing político de propostas efetivas. Não temos solidariedade para entender o quanto dói no outro as diversas fatalidades que vem ocorrendo no mundo. Independente da categoria, ainda se vota nesse país em prol das possibilidades que tal candidato dará para o indivíduo, sabendo que o interesse público está totalmente acima do privado na lei, mas na prática é um absurdo total. Para todo mundo, enquanto não é atingido, está sempre tudo bem.
Tudo bem que o mundo seja machista, LGBTfóbico e preconceituoso em todos os níveis: racial, religioso, economicamente e etc. Eu sou homem, branco, heterossexual, cristão e vivo bem. Minha mulher foi bem educada e entende o lugar dela em casa, cuidando dos filhos e me obedecendo: é pra isso que as mulheres servem, para serem nossas serviçais. Inclusive, o Bolsonaro fala algumas coisas esquisitas, mas ele nem está tão errado, afinal ele não é corrupto pelo menos (sendo machista, racista, lgbtfóbico e a favor da tortura está ok). Inclusive está tudo bem em pena de morte: é só a gente matar alguém para ensinar para sociedade que é errado matar alguém. E tudo bem também se os presos estão se matando, afinal, nenhum deles tem nada a ver comigo.
Tudo bem que 138 mortos no Espírito Santo, né? Ninguém nem sabe onde fica direito esse Estado. Tudo bem que o Rio de Janeiro vive uma Guerra Civil há décadas, afinal é na favela e Copacabana está Ok. Tudo bem um time de futebol morrer em um naufrágio em Uganda, mesmo menos de um mês depois do acidente do Chapecoense que foi uma tragédia, afinal, o que é mais uma fatalidade na África? Tudo bem se o Estado Ilâmico está matando, fica tão longe. A Síria, então, por que estamos preocupados com as mulheres estupradas e com as crianças massacradas em um país que nem sabíamos que existia? Tudo bem parar de investir em Saúde e em Educação, eu posso pagar as opções particulares. Tudo bem acabarem com a aposentadoria, eu pago previdência privada, tenho posses e recebo rendas.
Tudo bem que o aborto mata milhares de mulheres todos os anos, o que importa é o que a minha religião prega, que eu tenho estrutura financeira e familiar para ter essa criança e depois que nasce é só a mulher quem tem que cuidar, o filho é dela. Alias, mulher reclama de tudo.. Usa shorts num calor de 40º e não quer ser estuprada na rua. Inclusive, sempre falo pro meu filho pegar todas as menininhas; já a minha filha, se aparecer com um namoradinho aqui eu mato os dois.
Tudo bem que o tráfico de drogas mate milhares de pessoas, escravize todo o sistema politico, financeiro e carcerário do país, se continua molhando a mão das pessoas certas. Sabendo que em todos os países que as drogas foram legalizadas diminuiu e se racionalizou o consumo, a gente pode continuar alimentando as maiores organizações criminosas do planeta.
Tudo bem, sempre! Tudo bem que o código florestal seja uma PIADA e que jamais a mesma lei ambiental deva ser aplicada a São Paulo e a Amazônia, se no Brasil temos escondida uma bancada política de agropecuários enorme que quer mais é desmatar a maior floresta tropical do mundo e transformar tudo aquilo em Soja (e ok se desregula o clima do planeta todo e coloca a vida humana em risco, o importante é ter dinheiro). E é normal a gente subornar e ameaçar de morte membros ONGs ativistas ambientais pra ninguém tocar nesse assunto, são negócios, já pensou se todo mundo descobre que o que a soja que alimentamos o gado acabaria com toda a fome da África?
Tudo bem que diversos líderes religiosos estejam enriquecendo à custa da pobreza, eu tenho esclarecimento para não entregar a minha casa na mão de um pastor. Tudo bem se o Estado finge ser laico e tem uma enorme bancada evangélica, porque sou família tradicional brasileira. Tudo bem se tem Cruz e Bíblia nos ambientes políticos, afinal, eu sou cristão e fodam-se todas as outras religiões.
Por favor. A verdadeira “família tradicional brasileira” é pobre, em mais da metade das vezes é preta. Tem mais de 5 milhões e meio de filhos que nem o nome do Pai tem no documento. Depende de saúde, educação e previdência pública. Ganha um salário mínimo para sustentar uma família. Passa fome. Passa frio. Em milhares de casas não tem energia elétrica, não tem água encanada, não tem esgoto. Pessoas geniais são assassinadas e têm oportunidades arrancadas por serem LGBT ou pretos, pardos, índios. As pessoas que mais roubam e mais indiretamente matam em nosso país são homens brancos que vestem terno, trabalham quando querem, com conforto e ar condicionado e são sustentados por bilhões de dinheiro público que eles já receberiam fora a propina e corrupção infinita que eles praticam.

Que humanidade é essa que se julga cheia dos valores e, na primeira oportunidade sem a polícia para cobrar o cumprimento das leis, pessoas "de bem" roubam estabelecimentos e matam?

Ninguém se cura machucando o outro. Não é uma questão de opção política ou valores morais de uma sociedade criada com pilares ultrapassados, machistas e preconceituosos em todos os níveis. É uma questão de humanidade, que por um acaso e ironia é o que mais falta nessa espécie de nome duvidoso: “humanos”.